Eu, estou bem
Isso começou outro dia. Eu estava me queixando tranquilamente por ser obrigado pela sociedade a ter que me barbear todos os dias, e de como isso era realmente lamentável, e até mesmo que um pouco disso era culpa das mulheres, quando ela me jogou na cara:
“Para de reclamar; você não é oprimido.”
Observei-a de toda minha altura (e vi que meço 1,73 m de sapatos; só um pouco mais do que altura física), e me preparei para lhe devolver meu discurso de sempre em relação a esta questão. Um discurso que aprendi dos outros. Eu ia lhe explicar que, sim, eu também sou oprimido. Que o patriarcado, veja bem, também oprime os homens, minha cara. É como o racismo: os brancos também sofrem com ele, você sabe. E nem te conto sobre a exploração capitalista. Eu sei alguma coisa da exploração capitalista: eu sou professor. Isso quer dizer que ela me é jogada na cara todo dia.
Foi então que ouvi uma voz. Uma voz que vinha de muito longe. Bem do fundo de mim. Creio que ela sempre esteve lá, como um ruído de fundo. Mas ela começo a crescer, a aumentar, a tornar-se verdadeiramente enorme. E ela dizia a mesma coisa que a moça:
“Você não é oprimido.”
Ela se tornou um incômodo tão grande na minha cabeça que me senti mal – com a vergonha, com o medo, com a incompreensão. Era tão grande que não soltei meu pequeno discurso de sempre. Não, me calei e saí.
“Você não é oprimido.”
Todos esses anos reclamando, sendo persuadido que partilhávamos as mesmas lutas, que estávamos todos encarando o opressor para chegar lá. Foi um choque sagrado, quando penso nisso.
Creio que isso começou quando pude formular o seguinte: “sou um homem branco, hétero, cis e de alta classe”. Há uma questão que se sucede: “Mas quem me oprime, realmente?”. Procurei bastante, refleti bastante, e percebi o óbvio. “Ninguém”. Não sei qual é o caso para os outros homens brancos, héteros, cis e de alta classe, não conheço nada além da minha situação, mas a mim, ninguém oprime. Não. De verdade. Eu estou bem.
Ah, com certeza, o patriarcado, por exemplo, me incomoda mais do que deveria. Claro, com certeza, sou confrontado com obrigações de performance. Com certeza, não devo mostrar minhas emoções porque boys don’t cry. Claro, fui muito azucrinado durante a infância e a adolescência por ser uma negação com a bola (sempre fui), porque eu era o nerd de todas as classes que frequentei (não consigo escapar disso), porque eu era tímido (ainda sou), e porque eu não listava minhas conquistas femininas (não há ninguém, além de uma pessoa, que me interessa neste mundo). Houve até mesmo um cara que tirou uma da minha cara em um restaurante, porque me entusiasmei demais com uma mousse de chocolate (eu adoro chocolate). Ele disse “parece uma menininha”. Naquele momento, me irritei.
Se eu procurar bastante, posso até mesmo encontrar os casos onde foram as mulheres que me incomodaram desta maneira. Quando eu era adolescente, muito mais retraído do que hoje, ignorante das modas, inapto ao universo escolar sem originalidade, sempre houve meninas para me atormentar. E, sem dúvidas, para me rejeitar. Já vi caras se queixarem de “misandria” por coisas desse tipo. [Esta é] uma palavra que encontramos com facilidade por aí. Dizer que os homens se aproveitam da dominação sobre as mulheres? Misandria. Dizer que os homens não são oprimidos? Misandria. Não querer escutar um homem reclamando que é difícil ser homem num mundo de mulheres? Misandria. Sugerir que os homens são menos oprimidos que as mulheres? Misandria. As mulheres não querem sair com um homem? Misandria.
“Você não é oprimido.”
Sim, eu sofri, e às vezes sofro por causa das normas de gênero. Mas isso não muda em nada o problema: ninguém me oprime. Ainda que eu sofra, ninguém lucra com isso. Em que medida as gozações que sofri no ginásio e no colégio por parte das garotas melhoraram a condição feminina? Em nada. Em que medida a obrigação masculina de arrolar as conquistas sexuais é benéfico às mulheres? Em nada.
Todas essas situações lamentáveis que pude viver [ocorreram] porque não me conformei, pelo menos não o tempo todo, com o meu papel de dominador. Elas são os custos da dominação masculina. Mas, precisamente, o custo é o seguinte: há algo a ganhar em troca. Estes custos são, antes de tudo, um preço: se me conformo a eles, ganho todas as vantagens de ser um dominador. Ganho a admiração alheia, o acesso a certos círculos, até mesmo o simples direito a ser ouvido. E, ainda assim, para [ganhar] muitas dessas coisas, não tive de fazer nenhum esforço. Para ser considerado alguém sério, ponho um terno e uma gravata, e ninguém se interessará por minhas roupas. Claro, não tenho liberdade de ir ao trabalho de saia ou de bermuda florida. Mas em troca dessas restrições, ganho credibilidade, legitimidade, poder.
E isso não tem nada a ver com aquilo que os oprimidos vivem. Quando se é oprimido, se está precisamente na situação em que se deve pagar um preço sem obter nada em troca, ou ser pago em dinheiro de mentira. Uma mulher que aceita jogar o jogo da feminilidade e se maquia de maneira perceptível (além disso, ela adora maquiagem, é divertido)? Ela sempre terá um babaca para lhe incomodar – “Ei, se você não quer ser incomodada, você não pode chamar a atenção”. Ela deixa de fazer algo que ele gosta e aceita não se maquiar? “Ei, você não é feminina, você não se cuida, você não está bem, você está feia assim”.
“Você não é oprimido.”
E esta é a opressão, um jogo que mesmo quando você respeita as regras, você não pode ganhar. Poderíamos dizer a mesma coisa do racismo (mesmo que um cara me chame de “branco sujo” um dia, isso não me impede de ter acesso a um emprego), da sexualidade (se tenho medo que me tratem como um “veado” por não me vestir de maneira não muito “hétero”, são os homossexuais que são oprimidos, não eu), ou mesmo da classe social (a exploração da mais-valia interessa a quem, em sua opinião?).
Sim, porque não apenas ninguém me oprime, mas além disso eu me beneficio da opressão alheia. Não concordo, acho vergonhoso e sou politicamente contra, mas possuo ainda assim uma vantagem prévia sobre minhas concorrentes femininas quando se trata de arranjar um emprego… E isso não é nada além da ponta do iceberg. Não sou oprimido, mas além disso, sou o opressor.
Vi muitos homens que se colocam a questão de qual é o seu lugar no feminismo. Faço parte deles. Refletimos sobre o que fazemos nele, reclamamos que não é fácil, discutimos sobre nós, nós, nós. Tentamos mostrar que somos gentis. E ocupamos muito espaço. Acima de tudo, o espaço da discussão. Talvez devamos procurar menos sobre qual é o nosso lugar em um movimento feminista que não nos esperava, e um pouco mais sobre qual é o nosso lugar no patriarcado. E a resposta é que nós somos os opressores.
“Eu não sou oprimido.”
Não, sério, eu estou bem. Então, vamos falar um pouco de você?
para ver o texto original “Moi, ça va”, em francês, clique aqui
Tradução: Fernando Mekaru
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