Antônia
este texto abaixo, que atinge o político de forma sensível, intensa e dilacerante, faz parte da Blogagem Coletiva Luiza Mahin, organizada pelas Blogueiras Negras, para estes 125 anos de abolição da escravidão. Fica a homenagem às Luizas, Antônias e todas as mulheres negras que lutam (e lutaram) duplamente, triplamente … fortemente pela sua condição de mulher, para ser livre de fato!
“Antônia” (por Cassi Ana Rodrigres)
11 de maio de 2013
Essa semana as Vadias me pediram para escrever um texto pro 13 de Maio, para a blogagem coletiva Luiza Mahin. Me senti honrada pelo convite! Logo eu, que sempre vi com maus olhos essa exposição absurda que as pessoas fazem de si mesmas na internet, pela primeira vez me interessei pelo assunto. Mas, muita coisa mudou desde os meus 16 anos, quando de fato as pessoas usavam mais os blogs para mostrar suas vaidades para o mundo do que para expor suas posições políticas. Hoje, aos recém-completados 28 anos, aos poucos vou me entregando para esse mundo cibernético… Bom, mas o tema era o 13 de maio, não o ciberespaço…Vamos lá.
Quando surgiu essa ideia de blogagem coletiva achei muito interessante, apesar de achar que não tinha nada a ver comigo. Pensei em recusar o convite, pois estou passando por um momento difícil que é o de se concluir uma dissertação de mestrado (quem já passou ou está passando por isso certamente entenderá muito bem o que quero dizer). Pensei que não teria condições de escrever mais alguma coisa além da “qualificação”, já que a escrita tem se tornado um fardo pesadíssimo nos últimos meses. Mas, por algum motivo, hoje acordei inspirada e gostaria de escrever sobre esse 13 de Maio, fazendo uma homenagem.
Hoje é véspera de dia das mães, mas infelizmente não poderei passar esse dia com a minha mãe. E, especialmente esse ano, não estar com ela está sendo muito difícil. Durante toda essa semana me senti culpada por não poder comparecer lá em casa.
Explico: há pouquíssimo tempo, a minha mãe ficou órfã de mãe, e eu de avó. A Vó Lídia era a minha única avó viva, a minha outra avó, a Vó Tonha (é esse o diminutivo de Antônia) já nos deixou há muito tempo. Eu era tão pequena que nem recordo com precisão quantos anos tinha quando ela partiu. E hoje eu senti uma falta enorme dessas duas avós que já se foram; rezei por elas, acendi uma vela e pedi que me dessem forças para concluir a minha dissertação.
Mas, além desse sentimento desesperador que é a saudade, também refleti sobre as poucas recordações que tinha da Vó Tonha. Quando tento me lembrar de como era estar com ela, sempre me vem a lembrança de que eu sempre preferia a Vó Lídia. Na época, muito criança, não havia nenhum motivo aparente para tal escolha. Porém, quando tento relembrar um pouquinho do passado atribuo tal preferência ao seguinte motivo: a Vó Lídia era branca e a Vó Tonha era negra. E eu, filha de pai preto e mãe branca, sempre associei o tom da minha pele ao da minha mãe. Mesmo porque, a minha irmã mais velha tinha um tom de negrura um pouco acima do meu, e na minha cabeça de criança, ela era a filha preta e eu a branca, assim como meu pai e a minha mãe.
Hoje, consigo identificar como eu, ainda criança, já fazia distinções com base na cor da pele. E mesmo sem saber, reproduzia e reafirmava o racismo cotidianamente.
Minha mãe sempre relembra de uma vez que cheguei a “xingar” a minha irmã de negra. Isso foi entre os 8 ou 9 anos. E a Vó Lídia, que presenciou o episódio, ficou muito magoada com aquilo que eu disse.
Hoje, por algum motivo, os fantasmas do racismo voltaram a me assombrar. Talvez, porque a gente precise de um momento para exorcizar aquilo que guardamos a sete chaves para que ninguém saiba. Porque a gente mesmo já sabe que é feio, que é ruim. Mas é isso mesmo, nós também somos feios e ruins muito mais do que imaginamos e mostramos por aí.
A inspiração para escrever a dissertação (que agora também me assombra) veio de tudo isso. Minha grande questão era: como conseguimos permitir que essa lógica racista se imponha de forma tão perversa, a ponto de muitas vezes rejeitarmos nossa própria família, porque eles não são da cor que gostaríamos que fossem? Ou ainda, por que muitas vezes rejeitamos a nossa própria cor ou nosso cabelo crespo por achar que não são os preferidos? Por que quando eu ainda nem sabia fazer contas de matemática eu já sabia que ser branco era melhor que ser preto? Por que a minha irmã de 6 anos, de pele preta, sempre enfatiza que gosta mais do chocolate branco que do preto? Será que ela também já sabe que pra sociedade é melhor ser branco que preto? Porque o racismo se impõe de variadas formas no nosso cotidiano e a gente permite que ele se enraíze cada vez mais?
Há 125 anos a princesa assinou aquela carta de “liberdade”. Mas, eu ainda não me sinto livre para ser o que quero. Me sinto presa às amarras do racismo e da discriminação.
Hoje, acendi uma vela pras minhas duas avós, a Preta e a Branca. E pedi muitas desculpas para a minha Vó Preta por em algum momento da minha vida a ter excluído das minhas preferências.
A Vó Tonha nos deixou precocemente. Certo dia, ela sentiu dores no peito, foi para um hospital se tratar e nunca mais voltou à sua casinha pré-fabricada. Mas, certamente ela voltou àquela Casa que, nós, tão habituados com o individualismo burguês, desconhecemos.
Hoje, mais do que nunca, entendo o sentido de ancestralidade. E sei que as minhas duas avós torcem por mim sem fazer nenhuma distinção de cor. E escolhi lutar de todas as formas para que nenhuma mulher negra como a minha Vó Tonha tenha sua partida desse mundo antecipada porque no hospital o tratamento dado às mulheres negras é o pior.
Os médicos e enfermeiros acham que preto e preta aguenta mais a dor, o sofrimento a discriminação. Mas a verdade, é que a gente não aguenta não. A gente suporta. E vai suportando cada dia um pouquinho até uma hora que explode. Chora. Adoece. Maltrata também. E morre.
Hoje, eu sei que as mulheres negras não tem a preferência nos atendimentos médicos. São as que mais sofrem com as doenças mais banais. A Vó Tonha portava a doença de chagas, aquela que faz o coração aumentar de tamanho. Mas, não foi esse o motivo do seu óbito.
Hoje, saber todos esses dados sobre racismo, discuti-los, escrever sobre isso e ser uma acadêmica, não será suficiente para trazer a minha avó de volta. Mas, quem sabe de longe, ela se orgulhe dessa neta que assume sua negritude e luta diariamente contra o racismo e contra os seus próprios fantasmas. Obrigada Vó Tonha e obrigada Vó Lídia. Quem sabe um dia nos encontremos de novo e possamos compartilhar tudo que não foi possível enquanto estávamos por aqui, superar as barreiras da cor que nos é colocada quando chegamos a esse mundo.
E para esse 13 de Maio, fica o convite para lutarmos contra esses fantasmas racistas e machistas que nos assombram diariamente.
Cassi Ana Rodrigres, 28 anos, mulher negra, antropóloga, capoeirista, descobre a cada dia mais intensamente a força de sua negritude.
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