Relato de violência sexual: carnaval, repressão e tentativa de estupro
<<ATENÇÃO aviso de acionadores : violência sexual e agressão >>
No dia 03 de março de 2014 sofri uma tentativa de estupro no meio do carnaval, que deveria ser alegre e saltitante, nas mediações da Praça do Côco, em Barão Geraldo – Campinas – SP.
Resolvi escrever este pequeno relato pois acredito na força do empoderamento da fala, na potencialidade do rompimento das amarras de nossa voz, do rompimento de nosso secular silenciamento e, no compartilhamento das opressões para que elas talvez doam menos. Porque ao narrarmos as violências que sofremos encorajamos outras mulheres a falar sobre seus sofrimentos. Porque é preciso que adicionemos mais sujetividade nas estatísticas alarmantes de violência contra as mulheres.
Neste dia saí pela primeira vez para a festa de rua de Barão. Nunca fui muito afeita à atmosfera colorida e festiva do Carnaval, mas nesse dia tive vontade de sair e fui. Porque era o meu direito ir.
Acompanhei cercada de amigas e amigos o Bloco do Cupinzeiro e depois fiquei junto com um monte de gente gritando os conhecidos sambinhas do Pagode do Souza ali na Praça do Côco.
Do nada, literalmente do nada, somos chocados com gás lacrimogênio, bombas e balas de borracha. Foi o horror! Primeiro não sabíamos o que estava acontecendo, logo estávamos sendo empurrados e nossa integridade física estava sendo ameaçada pelo braço violento do Estado que a princípio deveria nos proteger.
Isso foi noticiado nos jornais, mas não noticiaram o momento em que senti mãos apertando meus braços, outras mãos me puxando e me vi sendo levada por três caras para um canto. Entrei em desespero. Não acreditava que aquilo estava acontecendo COMIGO.
Na minha militância feminista estou acostumada com as estatísticas sobre estupro e achava que eu estava ciente de que isso acontece com qualquer mulher, todos os dias. E ainda assim eu não acreditava. Eu não sabia o que fazer. E a sensação de vulnerabilidade, inaptidão e impotência te preenche como uma presença forte que te deixa paralisada.
Eles eram três, e eu era apenas uma. Eles eram três homens acostumados a utilizar sua força, seus corpos para conseguir o que querem.
Nós estávamos sob a atmosfera lancinante, petrificante e estonteante do gás lacrimogênio e ainda assim eles cogitavam obter prazer de um corpo que não estava disponível para eles. É repugnante. Eu não conseguia entender. Tentei usar os parcos conhecimentos de boxe e defesa pessoal que possuo, em vão. Eles eram três, e eu era apenas uma. Reagi. Esperneei. Não adiantou.
Eles me deram muitos tapas na cara, me bateram, me chutaram, me jogaram contra a parede.
Quando eles não conseguiram abrir o meu short jeans, porque eu estava de cinto, e eles estavam com muita pressa, eles me jogaram no chão e um deles colocou um pênis ereto, nojento, fedido, melecado, sujo e muito humilhante na minha bochecha, tentando colocá-lo em minha boca.
Enquanto isso um deles, não sei se era esse mesmo ou outro, chutava minhas costelas.
Como um presente irônico do destino, caiu uma bomba que os desatinou e eu consegui sair correndo. Foi realmente tudo muito rápido.
Saí correndo para encontrar uma Praça do Côco sitiada pela polícia, a mesma que deveria nos defender. Vi adolescentes chorando e fui conversar com elas, pedir que fossem logo para suas casas. Fui perguntar para a polícia o porquê de uma ação tão desnecessária. Fui empurrada por um policial, caí no chão de novo e aí, ao sentir a dor dos hematomas que rapidamente roxearam minhas coxas e bunda, lembrei que aquilo tinha sim acontecido, não era um devaneio de uma mente perversa.
Caída na sarjeta em prantos, fui socorrida por lindas mulheres que me abraçaram e levaram para braços amigos.
Eu não me lembro da cara deles. Eu não consigo me lembrar, e isso me dilacera, me atordoa.
Mas não devo sentir culpa. A culpa é toda deles. Da sociedade, do sistema, do machismo. Do que seja. Mas não é minha.
A surra de peru na cara tomou outro significado. O que antes era RÁ!, huuum!, Rough sex! Agora é doloroso cogitar.
E ainda assim o alívio: poderia ter sido pior. Poderia ter sido mil vezes pior. Sim, poderia, mas não posso deixar de lado a mudança que o que aconteceu causou em mim. Essas coisas te fazem perceber a profundidade das violências a que estamos submetidas. E elas talvez sejam menos físicas do que psicológicas…
O que posso fazer agora??? Era a pergunta que ressoava.
Conversamos sobre possibilidades de ação na Coletiva da qual faço parte. O empoderamento que coletivos feministas proporcionam fazem com que o estilhaçamento de minha mente não tenha sido maior. E decidimos tornar o caso público.
No sábado posterior ao episódio, pude bradar com todas as minhas forças no 08 de março unificado da cidade de Campinas, pude dizer mais uma vez que minha sexualidade não é acessória, que meu corpo não está disponível para o bel prazer de homens loucos por poder, que o corpo é meu e eu dou pra quem eu quiser, que se ser livre é ser vadia então eu sou vadia siiiim, que eu quero poder andar na rua tranquilamente com a roupa que eu escolhi, sem medo de encontrar num beco ou num canto escuro a face daquele que vai me machucar.
Quase todas os machucados físicos já sararam, mas durante semanas tive que conviver com a dor dos hematomas ao deitar, ao tomar banho, ao me tocar, ao ser tocada.
Toda vez que olho a cicatriz que permanece em minha mão, lembro do cheiro ocre, vinagroso e macilento daquele pênis que queria penetrar minhas entranhas.
Sinto nojo. Nojo. Nojo. E raiva. Raiva. Muita raiva.
Muita raiva de não saber o que fazer para reverter este quadro social tão desesperador de opressão às mulheres, aos negr@s, às lésbicas, aos gays, às trans, a todo mundo que é um pouco diferente da regra normativa imposta por uma ideologia “desigualizante”.
A única alternativa que me cabe, que nos cabe, é transformar essa raiva em força para a luta e ocupar todos os espaços que conseguirmos com o feminismo, para libertar o mundo enquanto libertamos a nós mesmas.
Decidi não denunciar. Claro que fiquei na dúvida, pensei nas estatísticas e como eu me omitiria sendo parte dessa luta todo dia?
Explico minha decisão, decidi não denunciar:
Primeiro porque a ação da polícia foi o que proporcionou o tumulto que proporcionou que eu ficasse longe dos meus amigos e que proporcionou que eu fosse agarrada. Uma grande parcela de culpa pelo ocorrido recai em minha análise sobre o aparelho coercitivo do Estado, e por isso eu não os perdoo. São eles que matam Amarildos e Claudias e, cegos pelo autoritarismo, ocupam diversas comunidades com sua própria lei, legalizando o terror.
Segundo porque eu não lembro da cara deles, não poderia haver nenhum resultado da denúncia além de meu caso se transformar num número seco, vazio, mais um…
Terceiro porque ainda que existam as Delegacias da Mulher, elas não contam com pessoal especializado que saiba lidar com esse tipo de caso e acolher a vítima. Quem participa de coletivo de mulheres e já acompanhou casos de denúncia sabe que o processo é todo muito doloroso e muitas vezes a pessoa desiste no meio, inclusive por insistência daqueles que deveriam protegê-la.
Eu não estava a fim de passar por todo esse processo, preferi denunciar por outros canais, para que outras mulheres saibam do episódio e fiquemos todas cada vez mais atentas e alertas.
Defendo que a decisão de denunciar ou não tem que ser da mulher, pois é ela quem vai ser humilhada, depreciada, por várias e várias vezes, sem saber se aquilo terá fim ou não. Vai ser questionada, levada a se auto incriminar, a desistir por falta de provas… que provas haveria nessa situação além do testemunho? Você é obrigada a ouvir pessoas dizendo que só penetração é estupro, ainda que já tenhamos conquistado legalmente que qualquer agressão sexual pode ser considerada estupro. E conseguimos isto no setor judiciário, argumentando com pessoas bem melhores em discussões do que aqueles que acham que as feministas estão sempre exagerando. E se um setor tão conservador foi obrigado a legitimar esta pauta quer dizer que o trem tá feio mesmo. É a constatação de uma estrutura tão machista, tão patriarcal que permite que os homens acreditem que nossos corpos são meros objetos voltados a seu prazer. E isso é inaceitável!
Além disso, muitas e muitos de nós não compactuamos com o sistema prisional e com as medidas punitivas do Estado. Cada vez mais as denúncias alternativas (notas de apoio, comitê de direitos humanos, por exemplo) estão ganhando adeptos. A cada denúncia ou relato acredito que mais mulheres tomam coragem e expõem seus algozes. E precisamos agora dinamizar medidas, respostas para apoiar e acolher as mulheres que decidem não se calar.
Ninguém deseja passar por isso, antes de questionar uma vítima pensem que a maioria de nós não consegue imaginar o trauma que causa a vivência de uma violência.
Se coloquem no lugar do outro, por um segundo. Por favor. O estupro é o coroamento das agressões e assédios que vivenciamos TODOS os dias, todas as horas.
É isso, o machismo mata, esfola, machuca, maltrata, viola, oprime todos os dias.
Mas isso não deve nos desanimar.
Unidas, somos uma revolução! Juntas não há quem nos segure!
Não quero viver na cultura do medo, quero que a rua seja nossa!
Vamos à luta!
Mexeu com uma, mexeu com todas!
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