Vadias e Profissionais do Sexo: Unidas por Respeito!
29 de setembro de 2013
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O movimento feminista, em sua longa trajetória, atuou de forma significativa no sentido de repensar e ampliar a concepção de alguns temas importantes sobre a sexualidade feminina, como por exemplo o tema da virgindade, do prazer feminino, da “liberdade sexual”. Podemos observar que existe uma relativa flexibilização das fronteiras mais tradicionais que determinam os limites do comportamento feminino.
Essa flexibilização, vale a pena ressaltar, é profundamente marcada por outras intersecções, como por exemplo raça, classe, sexualidade e regionalidade. Assim, os limites permitidos para uma mulher jovem, branca, com maior poder aquisitivo, vai ser distinto da realidade de outra mulher, não branca, de camadas populares e de certas regiões do país.
Entretanto, embora não possamos negar esses avanços, um tema continua ainda sendo um calo para nós feministas: a linha divisória que separa mulher “direita” e a mulher Vadia. Esse limite, que determina quais comportamentos estão dentro do aceitável e quais aqueles outros que atravessaram a fronteira que confere a identidade de “vadia” para mulheres. Ser Vadia, ou algum outro termo que coloque a mulher em um lugar de marginalidade em virtude de sua relação com sexo, também é um termo com concepções variáveis. Para alguns setores mais conservadores, por exemplo, a mulher ter vários parceiros sexuais, se recusar ao casamento ou à maternidade (ou pior, ter vários parceiros sexuais durante a gravidez) já é suficiente para classificá-la como Vadia e colocá-la em um lugar de marginalidade; para outros setores mais modernos o limite do permitido para a livre expressão da sexualidade feminina é a venda comercial do sexo.
Atravessar a fronteira do ser Vadia, automaticamente a coloca em um situação onde pensa-se que ela é merecedora de ações violentas, e portanto, marginalizada. As ações violentas podem ser desde agressões físicas mais explícitas (estupro, espancamento,etc) até ações bem intencionadas que as colocam em um lugar extremo de eterna vítima e iniciam uma cruzada de salvação de suas vidas. Todas essas ações resultam em um processo de extrema estigmatização das mulheres “vadias” e sua exclusão de vários outros espaços de sociabilização. Ambas criam imagens sobre as mulheres Vadias repletas de caricaturas sobre sujeira, imoralidade, subjugação e degradação da mulher.
Em outras palavras: embora caminhamos em maior ou menor medida para maiores possibilidades de exercer a sexualidade, ainda existem fronteiras muito bem demarcadas (moral e socialmente) para se exercer a sexualidade feminina, sobre a qual sempre nos baseamos para determinarmos até onde podemos ir enquanto mulher nas nossas experimentações sexuais (que pode muito bem incluir troca de sexo por dinheiro).
Assim, como Vadias, entendemos que nossa sociedade estabelece fronteiras entre o que é ser puta e mulher “honesta” e que tais fronteiras, quando aliadas a uma extrema divisão de classes e a desigualdade racial, confere uma cisão entre territórios de maior segurança e territórios de maior violência, onde as grandes protagonistas são as mulheres prostitutas, as mulheres negras, as mulheres moradoras das periferias das grandes cidades, as mulheres que trabalham em ambientes opressivos (chão de fábrica de multinacionais, mineração, motoristas de caminhões e ônibus, árbitras de jogos, entre infindáveis exemplos), enfim, as mulheres na diversidade que cabe nessa palavra!
Nós da “Coletiva das Vadias de Campinas” acreditamos que um caminho importante para se combater a violência contra a mulher é aprofundar as críticas sobre como a sexualidade feminina é classificada e controlada. Entendemos nosso corpo e o nosso comportamento sexual como um campo de batalha por meio do qual a sociedade define qual categoria de mulher somos, e qual o tratamento que merecemos.
Nesse sentido, entendemos as Associações de Profissionais do Sexos como importantes parceiras de vadiagens e acreditamos que essas organizações tem muito a oferecer para enriquecer o debate feminista.
Prostituição: meu corpo, minhas regras!
O nosso corpo nu, pintado e em luta nas ruas tem um sentindo muito claro: denunciar a violência que sofremos diariamente pelo estigma de sermos putas. Ao gritarmos “Somos Todas Vadias” temos uma dupla intenção de romper com as categorias dadas às mulheres – cocotas, vadias, santas, mães, putas, piriguetes, mulher fácil, mulher honrada – e ao mesmo tempo desfrutar dessa condição – da vadiagem – que nos é constantemente proibida e reprimida.
Essa postura de propor o desfrute de uma condição de vadiagem de forma pública nos aproximou de uma questão fundamental para a nossa luta: e as vadias profissionais?
As putas e prostitutas que carregam o peso mais dolorido desse sistema perverso de classificação, são marginalizadas e excluídas, tanto por setores mais amplos de nossa sociedade como também por grande parte do movimento feminista.
Sabemos que o debate sobre o trabalho sexual é complexo e repleto de lacunas a serem preenchidas. Mas defendemos, antes de tudo, que tal debate seja feito de forma séria por nós todas, e que num futuro não precisaremos mais falar de movimento feminista e movimento organizado de profissionais do sexo como duas entidades separadas e antagônicas.
1. Prostituição: modelo de sexualidade?
A prostituição como modelo de sexualidade é um dos principais temas em aberto no movimento feminista e também na maioria das associações de profissionais do sexo nacionais. Embora em outros países tal debate tenha caminhado, no Brasil ainda estamos muito ocupadas em nos situarmos dentro da acirrada disputa entre correntes abolicionistas (aquelas que não concebem a possibilidade de liberdade nem consentimento na prática da prostituição, e por isso se opõem a qualquer forma de dar garantias legais ao trabalho sexual) e correntes que defendem a auto-determinação das trabalhadoras sexuais.
Estas últimas defendem mudanças legais para garantir a segurança das mulheres prostitutas no ambiente de trabalho. Nessa disputa, feita em sua grande parte por mulheres não prostitutas, as narrativas vão cristalizando visões idealizadas e românticas; sem muito espaço para uma análise mais construtiva e realista da realidade do trabalho sexual. Assim, se por um lado as abolicionistas traçam imagens de extrema violência, alienação e subjugação da mulher prostituta, por outro lado muitas defensoras dos direitos das trabalhadoras sexuais reforçam imagens romantizadas de extrema liberdade e libertação da sexualidade feminina via prostituição.
Como um grupo que se define como anti-capitalista, temos uma preocupação com o status da sexualidade feminina como mercadoria. Acreditamos que valores patriarcais, machistas e heteronormativos estão impregnados substancialmente na nossa sociedade, incluindo nas diversas atividades realizadas por mulheres. Acreditamos que tais valores, assim como estão presentes em quase todas as profissões femininas, também fazem parte do universo do sexo comercial. No entanto, não acreditamos que prostituição seja sinônimo de mercantilização, onde o corpo feminino é automaticamente transformado em mercadoria. Como defendem as trabalhadoras sexuais, a prostituição é uma prestação de serviço, podendo estar mais ou menos inserida dentro de uma lógica machista e heterocapitalista. A nossa luta deve ser então pela transformação mais estrutural dessa cultura patriarcal, e com isso, o próprio universo do trabalho sexual se transformará também.
Existe violência no trabalho sexual, evidentemente. Qual trabalho típico de mulheres populares não está sujeito à violências (abuso, exploração, hipersexualização do corpo feminino)? Entretanto, a violência à qual as mulheres profissionais do sexo estão submetidas relaciona-se muito mais com o estigma e com a marginalização social do que com elementos próprios da relação cliente/trabalhadora. Ou seja, quem violenta as trabalhadoras do sexo, na grande maioria dos casos, somos nós, e não necessariamente a prática da prostituição. Ao contrário do que se pensa, assim como existem diversos relatos de experiências com clientes não agradáveis, existem outras infindáveis narrativas de gozo, de prazer, de intimidade, de carinho e de confiança. Isso te assusta? Não acredita? Talvez seja porque estejamos ainda muito aprisionadas na ideia de que amor e prazer não tem nada a ver com economia. Esquecemos por exemplo da estreita relação entre o casamento e contrato econômico, sem contar a enorme “economia do amor” que envolve intenso fluxo de presentes, de jantares e momentos onde a demonstração de afetividade e de “amor” está diretamente relacionado com um fluxo de dinheiro. Mas quando entra a troca direta de dinheiro por sexo, daí vira violência…….
Esse é um debate central em nossas discussões, e, ao nosso ver, devemos caminhar de forma conjunta – feministas e prostitutas – para pensar formas de lutarmos conjuntamente contra as situações de violência e de vulnerabilidade sob as quais estamos TODAS expostas.
2. Prostituição como trabalho.
Existem atualmente alguns projetos de leis que propõem a regulamentação da prostituição: O Projeto de Lei nº 4.244/04, proposto pelo deputado Eduardo Valverde; o Projeto de Lei 98/03, do Deputado Fernando Gabeira, e finalmente o projeto de lei mais recente do Deputado Jean Willys ( Projeto n. 4.211/2012). São projetos distintos entre si. O projeto de Valverde tem uma intenção mais clara de regulamentar a prostituição, se aproximando da ideia de que a prostituição sempre existiu e por isso deve ser controlada pelo Estado.
As outras duas propostas, de forma diferente, foram feitas conjuntamente com algumas entidades representativas de profissionais do sexo e tem como objetivo oferecer um ambiente seguro de trabalho para as trabalhadoras sexuais. O caminho proposto para esse objetivo é descriminalizar as atividades que envolvem o trabalho sexual, como por exemplo possuir casa de prostituição e o agenciamento. Os argumentos dessas entidades de trabalhadoras sexuais é que a situação legal ambígua na qual a prostituição se encontra é um dos principais elementos que dão espaço para a violência que elas sofrem no seu trabalho. Argumentam que as profissionais do sexo dependem de um espaço seguro para realizarem seu trabalho. Entretanto a nossa lei coloca na ilegalidade esses espaços, impedindo que a trabalhadora sexual possa usufruir de carteira assinada ou que possa recorrer à justiça caso sofra algum abuso de seu empregador. Em outra palavras, a criminalização de uma parte da cadeia da trabalho sexual impede a categoria de ter acesso à direitos trabalhistas e laborais.
Esse projeto possui muitas oposições, algumas inclusive dentro do próprio movimento organizado de prostitutas, como é o caso da Federação Nacional de Profissionais do Sexo do Brasil (oposição à Rede Brasileira de Prostituta). A Federação argumenta que o projeto, na forma como está formulado, ao invés de garantir mais direitos para as trabalhadoras pode benefeciar ainda mais o empregador e pode não ter muita eficiência para cumprir seus objetivos, pois mesmo que o trabalho seja regulamentado, muitas mulheres ainda podem ter medo de recorrer à entidades oficiais para fazer garantir os seus direitos. Acreditam que o melhor caminho para a luta contra a violência contra as trabalhadoras sexuais é a luta contra o preconceito social.
Apesar da discordância sobre os projetos de leis, ambas entidades acreditam na necessidade de lutar por direitos para as prostitutas buscando caminhos para o reconhecimento dessa atividade como um TRABALHO digno e lutando contra a estigmatização da mulher prostituta.
E onde estamos nós vadias nesse debate?
Nós, da Coletiva das Vadias de Campinas apoiamos de forma integral as iniciativas que promovam direitos e o reconhecimento do trabalho sexual como um trabalho legítimo na nossa sociedade. Nesse sentindo nos definimos como defensoras da luta por direitos das trabalhadoras sexuais.
O melhor caminho para se alcançar legalmente essas conquistas devem ser traçados pelo próprio movimento organizado de prostitutas. Nosso papel é contribuir com essa construção propondo reflexões, debates, apoio e agindo ativamente na luta contra a estigmatização das prostitutas.
Acreditamos que muito dos posicionamentos contrários ao reconhecimento da prostituição como trabalho se manifestam como preconceito, a chamada “putafobia”, e perpetuam a situação de falta de segurança e direitos trabalhistas para essa categoria de trabalho. Além disso, esses posicionamentos também, na sua maioria, não respeitam a mulher prostituta como sujeito de fala, de ação e de agência. Por isso, para nós, as profissionais do sexo precisam ser ouvidas. Estamos preocupadas (e ocupadas) com a auto-organização dessas mulheres e o que elas têm a dizer.
E queremos fazer esse debate de forma honesta, aberta e aprofundada, sem cair em maniqueísmos que buscam traçar de forma pejorativa ou idealizada tal atividade. A prostituição possui as mais diversas formas e modalidades, cada uma com sua especificidade, problemas, vantagens, belezas e sofrimentos.
Acreditamos que o trabalho sexual (feminino e masculino) não é incompatível com o mundo que a gente quer. Acreditamos que oferecer serviços sexuais, quando fora dos valores atuais machistas e mercantilistas, poderia ser tão prazeroso e tranquilo quanto o oferecimento de outros serviços, como por exemplo massagem.
Entretanto, acreditamos que a luta por direitos para as trabalhadoras sexuais deveria ser uma luta unificada de todos os grupos feministas de nosso país, mesmo para aqueles que acreditam que em um mundo utópico não existiria o trabalho sexual. Devemos partir sempre da situação concreta da vida das mulheres para pensar os caminhos da luta; como fazemos, por exemplo ao apoiar a luta pela equiparação dos direitos das trabalhadoras domésticas, mesmo considerando que tal atividade é fruto de um modelo econômico que funciona sob uma desigualdade social, racial e de gênero. E a situação concreta é que mulheres prostitutas estão lutando por seus direitos. Independente do debate sobre se a prostituição é uma escolha ou uma necessidade, mulheres prostitutas são unânimes em afirmar que sua atividade é um TRABALHO e, gostem ou não dessa ideia, elas tem DIREITOS.
Ao invés de julgar se as escolhas das outras são livres ou não, lutamos por um mundo sem desigualdade de classe e sem opressões de gênero onde o debate sobre a “escolha X necessidade” não faça sentido, pois saberemos que TODAS as profissões serão livremente escolhidas e igualmente valorizadas, seja professora, prostituta ou faxineira.
Não existe motivo para discriminar quais mulheres trabalhadoras que serão apoiadas em nossas lutas. Insistir na diferenciação entre as profissionais apoiáveis ou não em suas reivindicações é uma forma de reforçar essa barreira que divide as mulheres em dois tipos: as trabalhadoras que merecem direitos e as prostitutas que devem permanecer à margem.
É um dever do feminismo chamar para si esse debate.
Assim, para nós, se intitular Vadia tem tudo a ver com a questão da prostituição. Ser Vadia significa borrar essa fronteira normatizadora que divide ser “honesta” de ser “puta”.
Romper com categorias de classificação é um passo importante para mostrarmos que ser livre, além da liberdade econômica, é também fugir das categorias pré-estabelecidas que definem o que é ser mulher. As marchas das vadias devem se unir com as prostitutas, e as prostitutas devem se sentir convidadas a se unir com as Marchas. Uma união na posição de mulheres, para lutar para o fim dessa divisão de apenas dois papeis possíveis, pois essa divisão, que a gente vê refletida desde como nos vestimos, desde o nosso corpo, até como a cidade se organiza, é uma ferramenta poderosa na subordinação da mulher.
Temos que lutar juntas, para a liberdade de ser o que quisermos para além desses dois papeis, andar onde quisermos, vestir o que quisermos, agir como quisermos e trabalhar com o que quisermos. Só não irá mais fazer sentido estigmatizar uma trabalhadora do sexo quando não existir mais esta divisão entre santa e puta: quando ser prostituta significar apenas mais um dos possíveis papeis sociais que uma mulher pode escolher.
Queremos deixar bem claro que quando gritamos ‘mexeu com uma, mexeu com todas’ gritamos também por todas profissionais do sexo! Que cada vez mais gritemos juntas! Somos todas mulheres e trabalhadoras, marchemos unidas até que TODAS SEJAM LIVRES!
Links:
- Vídeo: Sou feliz sendo prostituta
-
Vídeo: Eu existo, quero os meus direitos. Aceite ou não, nós estamos aqui
-
Vídeo: As veteranas da prostituição no centro de SP
- Video: Entrevistas com Gabriela Leite “Dia da Puta”
- Vídeo: Evento “Profissionais do Sexo: Unidas pelo Respeito – Mulheres Guerreiras Campinas”
-
Discurso de Fundação da “Associação Mulheres Guerreiras”
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