para além da marcha
As Marchas das Vadias, das Putas, das Salopes, das Vagabundas imprimiram um novo fôlego aos movimentos feministas em todo o globo, desde as primeiras manifestações em 2011. Como um coletivo de vadias, entendemos que a construção de uma identidade Vadia, como um “nome” ou uma “marca de guerra” em nossas lutas feministas, expressa especialmente os feminismos que se centram nas questões voltadas para a liberdade do corpo e da sexualidade da mulher, da busca pelo autonomia (social, econômica, sexual, etc) de cada corpo/pessoa feminina — posto que historicamente o corpo masculino tenha gozado de mais liberdades de ir e vir como quiser. Não queremos dizer que essas pautas não estiveram presentes em períodos anteriores no seio das lutas feministas; porém, com a ascensão das Marchas das Vadias elas ganharam (ou retomaram?) visibilidade e notoriedade.
Inserem-se em uma nova configuração dos movimentos sociais, que vem se delineando nas últimas décadas, manifestando-se de forma pulverizada pelo país e pelo mundo. Essa organização descentralizada de luta se expressa em diversos movimentos recentes, como aqueles que convergiram em movimentos anticapitalistas, movimentos de mídias livres (rádios livres, CMI-Indymedia, software livre/tecnologias colaborativas), Occupy, Marcha da Maconha, Primavera Árabe, entre outros; movimentos autogestionários e horizontais, constituídos no anseio de alterar as estruturas da sociedade capitalista-colonialista-patriarcal-machista-homofóbica-racista em que vivemos.
Despontaram pelo mundo e dentro do Brasil várias Marchas das Vadias que se organizam em suas cidades, cada uma a sua maneira, com suas pautas/questões específicas, cada uma com uma estética/imagética. Nas Marchas das Vadias no Brasil, constatadas as diferenças, percebemos vários pontos de um diálogo importante entre os coletivos/grupos : a não hierarquização, a livre organização (autônoma), a ausência de personalismos nas ações, a luta pelo fim da violência de gênero e a garantia dos direitos das mulheres.
As marchas pelo mundo evidenciam o quanto as mulheres estão cansadas de sofrer violência cotidianamente só por serem mulheres: violência doméstica, estupro e todo tipo de violência sexual têm gerado agora não apenas revolta e indignação, mas também organização. As mulheres das marchas das vadias pelo mundo dizem BASTA!
Vemos assim surgirem movimentos que englobam características locais e momentâneas, mas que ao mesmo tempo denunciam a mesma violência sofrida e a mesma luta pelos diversos cantos do mundo. “Nesse sentido, as Marchas das Vadias conseguiram construir um discurso reivindicatório do corpo da mulher sobre a cidade, em função de sua reafirmação, reconstrução e disseminação simbólica por meio de plataformas virtuais (vídeos, textos e imagens) ao longo do mundo, configurando uma relação de intermediação entre corpo, cidade e tecnologia. Foram estabelecidas conexões performativas que transitam por esses três elementos estabelecendo uma reverberação mundial de dissensos, contaminações e agrupamentos diversos. Isso porque, as marchas – enquanto ritual – se utilizam de símbolos de contaminação à ordem, “bagunçando” as classificações acerca da mulher. Esta relação corpo-cidade-internet anuncia uma nova maneira de atuar para as organizações feministas, e também para atuação de outras lutas” (“A Marcha das Vadias: o corpo da mulher e a cidade”, por Didi Helene)
Seria essa nova estética/imagética, de certa forma expressão dessas formas de organização, que ganharia tanta atenção da grande mídia, diferentemente dos movimentos feministas que existem há mais tempo (MMM, organização de mulheres dentro de partidos políticos; movimento de mulheres negras e outrxs)? — e essa não é uma questão retórica. No entanto, os festivais feministas, manifestações mais atuais e que dialogam com a forma de organização das vadias, também não ganham tanto espaço na mídia como as Marchas das Vadias. A partir disso nos perguntamos mais: o que significa essa visibilidade e o que fazer com ela para além da Marcha dessa vadiagem feminista?
A reflexão provocativa é a seguinte: qual é o risco de toda essa recriação/energia/luta se centrar apenas na organização de uma Marcha anual? E dessa marcha ser banalizada e, assim, se transformar em uma manifestação “da moda”, que pode em pouco tempo perder toda sua potencialidade? Acreditamos que toda essa luta, que usa o corpo para fazer revolução, precisa transbordar em ações cotidianas, de transformação constante, aproveitar sua visibilidade para contaminar a ordem, bagunçando as classificações acerca da mulher, em busca de desconstruir as estruturas opressoras da sociedade em que vivemos, com a mesma energia que colocamos na organização de cada marcha.
E isso é possível principalmente no diálogo com as diferentes formas de lutas feministas. Como afirma um texto da Marcha das Vadias DF, “o diálogo é uma das bases da nossa formação enquanto coletivo e entendemos que o feminismo, na verdade, são vários“. Se “prezamos pela heterogeneidade de visões, experiências, opiniões inclusive dentro dos próprios grupos” e “acreditamos que é a partir das divergências, diferenças e do diálogo que poderemos construir e reconstruir diariamente espaços nos quais mulheres dos mais diversos tipos se sintam à vontade para serem sujeitas dos seus próprios feminismos”, precisamos ir além da Marcha!
As Marchas das Vadias só puderam existir como resultado do processo histórico de lutas feministas anteriores e, por isso, refletimos sobre a realização das marchas (no Brasil), em datas indicadas quase que aleatoriamente, quando as vadias saem às ruas por uma luta mais ampla (e não devido a casos pontuais de violência). Caminhando junto a antigos e novos grupos/feministas autônomas/coletivos que constroem suas lutas pelo Brasil, nos questionamos até onde seria necessário instituirmos (formal ou informalmente) uma nova data para essas manifestações; não seria esse um movimento de isolamento, não-diálogo ou simplificação em relação aos movimentos feministas que existem por aqui e pelo mundo? Lembramos que dias como o 08 de Março (Dia Internacional da Mulher) e o 25 de Novembro (Dia Internacional de combate a Violência contra a Mulher), entre outras datas simbólicas já consolidadas, foram conquistas que necessitaram de muito tempo de luta e muito suor militante para se instituírem. Por que precisamos de mais uma data sendo que podemos nos unir, recriando e re-fortalecendo espaços de lutas históricas com nossa vadiagem provocativa?
Não marcharemos em uma data nova, não vamos instituir agora o dia da Marcha das Vadias, como se não houvesse datas a serem apropriadas, transformadas, ocupadas e compartilhadas com outras feministas que estão na luta há muito tempo e entre as novas. Vamos nos unir à todxs que estão nas lutas feministas (re)construindo o presente e lutando por um futuro menos opressivo!
A ideia aqui, com estes questionamentos, não é negar a importância da realização das Marchas das Vadias (onde surgiu nosso coletivo, movimento com o qual nos identificamos!), muito menos indicar que tais marchas são desnecessárias, ou ainda que não as apoiamos. Muito pelo contrário, é a expressão de uma vadiagem feminista da buceta! — e este ano surgiram campanhas de divulgação sensacionais!!
No entanto, buscamos aqui refletir até onde vai a força de as realizarmos anualmente e concluímos expressando nossa escolha, do Coletivo das VAdias – Campinas, por fortalecer nossas ações cotidianas, com a força da visibilidade que ganhamos e da potencialidade que exprimimos, e pelo diálogo com outras organizações feministas, para juntas construirmos o dia 25 de novembro (Dia Internacional de combate a Violência contra a Mulher) com oficinas, atividades culturais e ocupação do espaço público. Trazemos nesse texto um grito, que queremos compartilhar com quem sabe do que estamos falando. E todas as Marchas das Vadias sabem, assim como todxs feministas!!! Não silenciaremos!! Mexeu com uma, mexeu com todas!!
(Coletivo das Vadias – Campinas)
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